sábado, 16 de outubro de 2010

Dormência


Muitas das mulheres com quem tenho falado,  contactado mentalmente ou virtualmente, trocado olhares ou impressões, têm revelado um cansaço no qual eu me revejo, uma lassitude no olhar. Não conseguem aliviar-se um pouco do peso dos que amam. Deixo desde já bem claro, que não é por não abraçar de alma e coração o papel de mãe, com gratidão e alegria.

Meu Deus, como detesto quando tenho frio...
Pensei esgotar-me nesses papeis vários, esvair-me em responsabilidade e olvidar-me definitivamente de mim, dos meus desejos e quereres. Quem queria saber de mim? Absolutamente ninguém, desde que eu preenchesse o que era requerido socialmente.
Adormeci para mim e fiquei latente...
Nunca mais ser vista como uma mulher que tem desejos de crescer também e de se realizar, chocou-me de tal forma que entrei, possivelmente em coma. Mãe fica onde está, sempre.
Dona de casa alimenta, limpa, tem a roupa da família em dia.
Como detesto os comentários da minha mãe e os conselhos que me dá sobre organização da roupa, como detesto quando ela não para de arrumar para ajudar, em vez de se sentar um pouco. Como detesto que dia após dia me perguntem o que é o jantar. Como detesto que me digam "havíamos de", quando sei perfeitamente que querem dizer "devias".

Quando acordei, calcei sapatos de verniz, com salto, para crescer com brilho. Gosto dos meus sapatos de verniz, de princesa, que a minha pequena me pede para calçar, quando for grande...é bom sinal. Desde esse dia que tenho sempre um par de sapatos de princesa, é que nunca se sabe...
Quando acordei entrei em auto combustão, perdi os quilos do meu interregno vegetativo.
Quando acordei, fiz as malas e fui para Paris.
Decidi que só queria cozinhar por prazer.
Aprendi a dizer não e quase nunca...quase nunca, me sentir culpada por isso.
Aprendi a conjugar o verbo querer e ir, na primeira pessoa do presente do indicativo.

Quando acordei daquele esquecimento de mim...também os outros se tinham esquecido, e não me reconheceram. Viver  na  transparência, não um estar no qual eu me reveja e queira para mim.

Difícil é a reconquista da liberdade,do ser e  do querer... não se faz sem mágoa e sem quebras.

2 comentários:

  1. Este texto lembrou-me o livro The Awakening, da escritora Kate Chopin, tb ela aquariana... Li-o há mts anos, no original, e embora seja um nadinha trágico, é muito muito bonito. É o tal despertar... Os papéis que as mulheres têm de desempenhar maçam e fazem-nos esquecer de nós. Por isso, força, a liberdade é algo precioso. E não é fácil conquistá-la, concordo, dentro do casamento e da maternidade, há o risco de rupturas sim, por isso há que apreciar muito essa vitória. Parabéns Faty

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  2. Não sei como te hei-de dizer que eu li nos teus olhos e escassas palavras que consegui que me dissesses, o que escreveste neste teu blog sobre ...ti...antes de saber do teu blog sobre ti...sobre querer respirar e, simplesmente, não se ser capaz porque tudo à volta é suposto ser tão feliz que atrofia, por não percebermos onde está a felicidade e termos que parar para pensar se somos nós que a não vemos ou é ela que não se revela. E todos à nossa volta sorriem e dizem que está tudo bem e a nossa cabeça quase estoira de pensarmos que estamos loucas porque nada está bem. Nada. Paris. Já me contentei com o Alentejo...mais perto, mais económico, mais silencioso. La vie en rose? Humm...quão longe esse sonho... de um ombro, um colo, um abraço, um beijo sempre quando é preciso e é preciso sempre...As horas passam, os dias, os meses, os anos. E a vida parada. Às vezes vem à memória todo um passado que de tão longínquo, parece irreal. Como irreal parece, quantas vezes, o presente que queremos sugar num olhar, numa música, numa palavra, num gesto que nos toca e se esfuma algures no futuro...

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