domingo, 29 de agosto de 2010

Corações de Papelão em Terra de Nenhures

Dedico esta escrita à Mademoiselle que me espicaçou este texto. Digna representante de apriorismos, digníssima herdeira das ideias avançadas de seus progenitores e falante do alto dos seus altos estudos Lusos. Passado um mês sobre a invasão da tribo dos "Avec", venho dar o meu pequeno testemunho, feito de Cependants. Sou testemunha que pertenceu, por obra do mero acaso, a esta tribo binómada, que não sabe onde pousar o coração e a língua.
Mademoiselle, muy douta representante e esclarecida guardiã, da beleza e da rectidão da sua língua materna, comentava que, por parca instrução de quem partiu em Terras Gaulesas, ter-se-ia engendrado uma vergonhosa e ridícula forma de falar e estar. Essa mesma pouca instrução, também teria sido impedimento, para que tivessem integrado todas as regras do bom uso e pronúncia da língua francesa.
Não a conhecendo bem, mas sabendo do seu elevado grau académico, gostaria muitíssimo de a ouvir, no seu francês mais-que-perfeito, caso emigrasse. Neste ponto, deixem-me rir um cadinho hihihiihihihihihiihih!!!! Pois bem, esta forma de se exprimir, leva-me realmente a sorrir. Sorrir sem desprezo ou troça alguma, mas com grande ternura. Revejo a minha tribo de tios e tias e é neles que vou basear grande parte do meu apontamento de vista.

Oh, nem sempre tive orgulho de ser emigrante de Nem cá Nem lá. Sentia-me desconfortável com os pés desenraizados, cada um assente numa cultura diferente. Olhem, imaginem o que é andar a pé coxinho todos os dias. Sentia-me envergonhada cá e lá, sempre que abriam a boca, andava cuidadosamente afastada, para não ser assimilada àquele grupo que, para além de mais, também falava alto. Hoje me penitencio, mas para minha defesa, apenas era quinzaninha.

A riqueza do dialecto françuguês, repousa aleatoriamente, na junção das duas línguas numa perfeita simbiose, e na tradução mais que livre de expressões idiomáticas.
Idos para terras estranheiríssimas, onde usos, costumes e língua, lhes eram alheios, juntavam-se em associações, onde alegremente palravam, aprendendo uns com os outros. Assentavam na oralidade as não-regras de tal fala num “olha, como se diz?”, e pimba, lá vinha a tradução instantânea.
Mademoiselle, que língua gostaria que lhe soasse aos ouvidos, nos seus parcos momentos de praia, nas nossas festas e romarias de Agosto? Uma língua usada na perfeição, de gente que não a fala no seu dia-a-dia?

Não usam o Françuguês para se evidenciar, Cara Esclarecida. É para se fazer entender dos seus. O Michel da anedota, não perceberia patavina se a sua querida avó, lhe dissesse “Michel, cuidado que vais cair!”, e o Michel, cairia por certo. É uma questão de sobrevivência. O Michel domina perfeitamente a língua do país onde nasceu, mas a sua avó esqueceu a língua materna que não aprendeu, e nunca chegará a aprender a língua onde pousou as malas.

Michel, que nome fantástico! Já nem em França há desses pequenos. Deveriam por ventura, ter-lhe chamado Manel? Aquela criatura, jamais voltará para terra dos seus antepassados e não vejo vantagem nenhuma em atrofiar-lhe a vida à nascença. Que dizer dos Kevin, que todos os dias nascem em território nacional? Nada, não digo nada. Apenas que vivam os Franciscos e as Marias, que não sabem a sorte que têm, em ter pais finamente demodés. Nesta aldeia global, deveríamos apelidar os nossos filhos, de um nome usado no país onde gostássemos que eles emigrassem…para sair de cá, para longe de nós.

Estas pessoas, amam genuinamente e ingenuamente o seu país e depois de ganharem a vidinha, fazem-nos a honra de vir morrer pacatamente debaixo do sol pátrio. Nutrem uma saudade constante de tudo (que até o bacalhau é melhor), até ao mês de Agosto.
Voltam para a Mãe, que apenas existe nas suas memórias já muito fatigadas. Já não se lembram porque partiram ou abalaram.
Abalar é o verbo correcto, para um sismo que os desenraizou bruscamente, um dia. No percurso de volta, irão deixar netos e filhos franceses, que apenas Verão no querido mês de Agosto, na concretização do sonho final.

Em tempos idos, esta tribo ia “de assalto”, e durante a minha meninice, imaginei que se deslocavam aos saltos, ao passar a fronteira, perseguidos pelos guardas fronteiras.
Do linguajar, guardo saborosas recordações. São imagens deliciosas que me afloram e me aproximam da juventude ida das minhas tias.
Lembro-me da minha tia (ser bilingue de uma assentada só), a contar de forma veemente, o episódio da sua rica máquina de lavar. Reproduzo aqui em discurso livre, sem direitos de autor: “ Ai, que a minha machina de lavar está em panna. Apoiei nas tuchas todas e ela não marcha”. Acho que deveria agradecer este exercício de estilo, à maneira de uma lufada de ar fresco. Essa mesma minha tia, contava que, numa ida ao médico, ele lhe pediu para ela se despir, ao que ela lhe respondeu, que não podia porque estava “com os truques”… leia-se menstruação. Dado que os “trucs”, na língua de Molière, serve para nomear tudo e qualquer coisa, acho esta associação fabulosa. A minha tia teria um pudor menos engraçado que a mãe de Mademoiselle? Pois acredito que a mãe de Mademoiselle, deve dizer “partes baixas” ou “a boca do corpo”, para se referir aos seus órgãos genitais.
A minha mãe, disse-me, anos a fio “fifilha, logo que chegues a casa, passa-me um cuzinho de telefone” e, na minha cabeça, não é que aquilo fazia sentido? Era uma mensagem de carinho onde me entendia com a minha mãe. O “cuzinho era só nosso.

Não me vou descartar deste rol, não seria justo, que também quero ser engraçada. Durante o meu primeiro ano cá, disse tantas coisas bonitas! A casa Aveirense onde passei a viver, quando vim para a universidade, ouviu e registou, numa folha afixada na porta do frigorífico, pela mão das minhas companheiras. Vieram os “vou prender o comboio”, “vou fazer a loiça” e os mais que possam imaginar. Fui-me emendando, na imersão e nos risos alegres.

O que me resta hoje?
Uma coisa em que ninguém acredita. Não consigo dizer asneiras. Não é uma incapacidade do sistema fónico, é que não fazem sentido para mim. Não encontro consolo, nem alívio, num sentido “f….-se!”, nem num “ C..a..o!” purificador ou de expressão de dor, porque não exprime nada. São palavras, não vazias de sentido, as vazias de sentir.
De vez em quando, ainda digo uma coisa ou outra…francesice.

Por isso, não sejam benevolentes com o françuguês, sejam apenas compreensivos. A compreensão de quem sabe que é difícil viver longe para ganhar a vida, não por amor. Esta língua não é um desamor à língua mãe, é uma ponte para assentar os dois pés, num acto comunicativo válido.

E se no fim disto tudo, a Mademoiselle continua a sentir uma pontinha de inveja, perante o que estas pessoas exibem em termos materiais …ela que se faça à estrada! … ah, e boa sorte, querida, na tua vida nova! Terei muito gosto em saber o nome dos teus filhos e em ouvir-te...passados alguns meses de Agosto.

1 comentário:

  1. Eis a resposta mais inteligente que já li ao preconceito e à mesquinhez. Sem dúvida!

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